Introdução
Desde os primórdios, a filosofia e a teologia se dedicam à busca pela verdade, uma aspiração essencial do ser humano. Essa jornada sempre envolveu a complexa relação entre fé e razão, da qual emergiram duas tendências filosóficas distintas: o racionalismo, que valoriza a razão e desconsidera a fé, e o fideísmo que realça a fé e negligencia a razão.
O embate entre racionalismo e fideísmo tem uma longa história, e a Igreja Católica ofereceu respostas significativas ao longo do tempo, culminando na síntese doutrinal apresentada no Catecismo da Igreja Católica (CCE). Fundamentada em sua rica tradição teológica e nos ensinamentos do Magistério, a Igreja Católica oferece uma perspectiva que harmoniza fé e razão, reconhecendo o valor e os limites de ambas. No século XIX, diante de um racionalismo que buscava a autonomia total da razão, o Concílio Vaticano I promulgou a Constituição Dogmática Dei Filius, afirmando a capacidade da razão, mas também a necessidade da Revelação e a harmonia entre ambas. Mais de um século depois, a Carta Encíclica Fides et Ratio de São João Paulo II revisitou essa relação em um contexto filosófico com novos desafios, reafirmando princípios que o Catecismo apresenta. Assim, este artigo explorará as visões do racionalismo e do fideísmo à luz do Catecismo, da Dei Filius e da Fides et Ratio, definindo a perspectiva católica de uma relação essencialmente harmoniosa entre a inteligência humana e a adesão à verdade revelada.
A Visão Católica sobre o Racionalismo
O racionalismo propõe que a razão é o caminho mais seguro, ou até mesmo o único, para se alcançar o conhecimento. Através do raciocínio lógico e da percepção intelectual, a razão humana busca a verdade de forma independente, submetendo frequentemente a fé à análise lógica.
Na perspectiva católica, a razão é um dom divino que capacita o ser humano a reconhecer a existência de Deus, a compreender alguns de Seus atributos e a discernir os princípios da lei moral natural. Como afirma o Catecismo da Igreja Católica, “o mesmo Deus, que revela os mistérios e comunica a fé, também acendeu no espírito humano a luz da razão” (CCE n.159), destacando o papel legítimo e importante da razão na busca pela verdade. A Constituição Dogmática Dei Filius, reafirma essa visão, ensinando que “Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas” (DH 3004).
Apesar de reconhecer o valor da razão humana, a Igreja Católica também admite que ela tem limites, principalmente quando se trata dos mistérios da fé. A Dei Filius aponta que existem verdades que:
excedem de tal modo a inteligência criada, que, mesmo depois de revelados e aceitos pela fé, permanecem ainda encobertos com os véus da mesma fé, e como que envoltos em um nevoeiro, enquanto durante esta vida vivermos ausentes do Senhor; pois andamos guiados pela fé, e não pela contemplação [2 Cor 5,6 s]. (DH 3016).
Na Carta Encíclica Fides et Ratio, o Papa São João Paulo II fundamenta seu comentário na perspectiva de Santo Anselmo de Cantuária, para argumentar que:
…a prioridade da fé não faz concorrência à investigação própria da razão. De fato, esta não é chamada a exprimir um juízo sobre os conteúdos da fé; seria incapaz disso, porque não é idônea. A sua tarefa é, antes, saber encontrar um sentido, descobrir razões que a todos permitam alcançar algum entendimento dos conteúdos da fé (FR n.42).
A Igreja acredita que a razão, por si só, não pode alcançar a verdade completa, especialmente em relação às verdades sobrenaturais. Submeter a fé à razão pode levar a uma simplificação prejudicial e à perda da profundidade dos mistérios divinos.
A Perspectiva Católica sobre o Fideísmo
O fideísmo enfatiza a primazia da fé como a única ou principal via para o conhecimento das verdades religiosas, frequentemente tratando a razão como desnecessária ou incapaz de contribuir para a compreensão dessas verdades.
Reconhecendo a importância fundamental da fé como adesão à verdade revelada por Deus – “a fé é certa. É mais certa que todo o conhecimento humano, porque se funda na própria Palavra de Deus, que não pode mentir” (CCE n.157) –, a Igreja Católica, contudo, rejeita o fideísmo por considerá-lo uma abordagem inadequada.
Essa certeza da fé, contudo, não implica uma rejeição da razão. Pelo contrário, como afirma a Dei Filius, “a reta razão demonstra os fundamentos da fé e, iluminada por sua luz, cultiva a ciência das coisas divinas” (DH 3019).
O Papa ressalta de modo particular os perigos do fideísmo, alertando na Fides et Ratio que:
A fé, privada da razão, pôs em maior evidência o sentimento e a experiência, correndo o risco de deixar de ser uma proposta universal. É ilusório pensar que, tendo pela frente uma razão débil, a fé goze de maior incidência; pelo contrário, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstição. (FR n.48).
Reforçando esse ponto na Fides et Ratio, citando São Tomás de Aquino, ele acrescenta que:
A fé não teme a razão, mas solicita-a e confia nela. Como a graça supõe a natureza e leva-a à perfeição, assim também a fé supõe e aperfeiçoa a razão. Esta, iluminada pela fé, fica liberta das fraquezas e limitações causadas pela desobediência do pecado, e recebe a força necessária para elevar-se até ao conhecimento do mistério de Deus Uno e Trino. (FR n.43).
Portanto, a visão católica se distancia de qualquer forma de fideísmo que despreze o papel da inteligência humana na compreensão e na articulação da fé.
A Perspectiva Católica da Complementaridade entre Fé e Razão
A doutrina católica ensina uma relação essencialmente harmoniosa entre fé e razão, enxergando-as não como forças opostas, mas como dons de Deus que se complementam e se enriquecem mutuamente na busca pela verdade. A razão pode preparar o caminho para a fé, demonstrando a plausibilidade da existência de Deus e da lei moral natural, enquanto a fé ilumina a razão, abrindo-a para verdades que transcendem sua capacidade natural de descoberta e oferecendo um sentido último para suas investigações.
Como expressa a Dei Filius, “longe de se oporem entre si, ajudam-se mutuamente; porque a reta razão demonstra os fundamentos da fé e, iluminada pela sua luz, cultiva a ciência das coisas divinas; e a fé liberta e preserva a razão de erros e a enriquece com muitos conhecimentos” (DH 3019). Essa colaboração essencial é reiterada na Fides et Ratio, onde o Papa São João Paulo II enfatiza que “a fé e a razão (Fides et Ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” (FR, Introdução). A Igreja Católica, portanto, promove um diálogo constante entre a teologia e a filosofia, reconhecendo a autonomia de cada disciplina, mas também sua mútua necessidade na busca pela verdade integral sobre Deus, o homem e o mundo.
Conclusão
A análise das perspectivas do racionalismo e do fideísmo à luz do Catecismo da Igreja Católica, da Constituição Dogmática Dei Filius e da Carta Encíclica Fides et Ratio revela a profunda sabedoria da tradição católica. A Igreja evita os extremos de ambos os sistemas, reconhecendo a validade e os limites tanto da razão quanto da fé. A razão é valorizada como uma capacidade inerente ao ser humano, capaz de alcançar importantes verdades e de auxiliar na compreensão da fé. A fé, por sua vez, é acolhida como um dom divino que nos introduz a verdades que transcendem a razão, oferecendo um horizonte de sentido último para a existência humana. A Igreja Católica, guardiã da verdade, cultiva uma relação dinâmica e harmoniosa entre a fé e a razão, permitindo que ambas as “asas” elevem o espírito humano à contemplação da verdade em sua plenitude.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Fides et Ratio. 1998. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091998_fides-et-ratio.html. Acesso em: 05 abr. 2025.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição Vaticana. 2022. E-book Kindle.
VERITATIS SPLENDOR. Constituição Dogmática Dei Filius sobre a Fé Católica. 2012. Disponível em: https://www.veritatis.com.br/constituicao-dogmatica-dei-filius-24-04-1870/. Acesso em: 05 de abr. de 2025.
DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Peter (Org.). Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. Tradução de José Marino Luz e Johan Konings com a colaboração de vários teólogos. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2006. Disponível em: https://estudostomistas.org/download/69/livros-da-escola-tomista/8383/denzinger-compendio-fe-e-moral.pdf. Acesso em: 29 de abr. de 2025.
Artigo apresentado como requisito parcial para a aprovação no Módulo “Introdução à História da Teologia”, ministrado pelo Professor Dr. Rudy Albino de Assunção, no Centro Universitário Católico Ítalo Brasileiro.