Introdução
A fé católica, alicerçada na Tradição Apostólica e no Magistério da Igreja, compreende a revelação divina de forma distinta da doutrina protestante da “Sola Scriptura“. Este artigo se dedica a explorar essa distinção fundamental, detalhando a visão católica sobre as duas suficiências das Escrituras: a suficiência material e a suficiência formal. Ao invés de uma interpretação isolada da Bíblia, propõe-se uma visão integrada e completa, na qual a Sagrada Escritura é entendida dentro do contexto vivo da Tradição da Igreja e sob a guia infalível do Magistério. Essa abordagem garante a fidelidade à integral Palavra de Deus e a preservação da unidade da fé, tal como foi transmitida pelos Apóstolos e vivenciada pela Igreja ao longo dos séculos.
Suficiência Formal da Bíblia
A suficiência formal da Bíblia, também conhecida como “Sola Scriptura” (Somente a Escritura) foi um dos pilares da Reforma Protestante do século XVI. Esse princípio afirma que a Bíblia é a única autoridade infalível para a fé e a prática cristã; e possui todas as verdades reveladas necessárias para a salvação.
O surgimento desse princípio marcou uma divisão significativa no cristianismo ocidental. Os protestantes passaram a rejeitar a autoridade da Tradição da Igreja Católica e do seu Magistério e a defender a importância da leitura e interpretação individual da Bíblia. Para eles, qualquer pessoa que seja guiada pelo Espírito Santo consegue interpretar as Escrituras. Não há necessidade de revelações adicionais ou fontes externas para complementar as Escrituras e interpretam a ênfase católica no Magistério como uma elevação da autoridade da Igreja acima da autoridade da Bíblia.
Suficiência Material da Bíblia
A suficiência material da Bíblia, ensinada pela teologia católica, afirma que tudo que um cristão precisa acreditar pode ser encontrado nas Escrituras, ao menos implicitamente. Ela é, portanto, suficiente materialmente, mas não formalmente.
A ‘Dei Verbum‘, do Concílio Vaticano II, articula a compreensão católica da revelação divina, enfatizando a complementaridade entre Escritura e Tradição, ambas provenientes da mesma fonte divina. A interpretação autêntica das Escrituras é confiada ao Magistério da Igreja, que garante a leitura da Bíblia em consonância com a fé e a Tradição. O Magistério, então, não se coloca acima da Palavra de Deus, mas a serve, preservando a unidade e a ortodoxia da fé.
Uma analogia simples e esclarecedora, atribuída a Michael Liccione, sobre as diferenças entre as duas suficiências compara a “suficiência material” da Bíblia a uma pilha de tijolos, que representaria o conteúdo das Escrituras. Esses tijolos, ou informações divinas, são considerados completos e suficientes para a fé, mas não possuem uma determinação de como devem ser usados. Do mesmo jeito que esses tijolos podem construir estruturas diversas, a Bíblia, por si só, pode também gerar diversas interpretações.
Já a “suficiência formal” é comparada ao projeto de construção que determina a organização dos tijolos. Na visão católica, esse projeto é fornecido pela Tradição Apostólica e pelo Magistério da Igreja, que orientam a interpretação e a aplicação das Escrituras. Sem esse projeto, os tijolos podem ser usados para construir “catedrais” ou “casebres”, ou seja, interpretações ortodoxas ou heréticas da fé.
Fundamentos Bíblicos da Tradição e da Autoridade da Igreja
A Igreja Católica fundamenta a importância da Tradição e da autoridade da Igreja em diversas passagens bíblicas. Em 2 Tessalonicenses 2:15, a exortação para conservar as tradições, tanto orais quanto escritas, “Assim, pois, irmãos, ficai firmes e conservai os ensinamentos que de nós aprendestes, seja por palavras, seja por carta nossa.”, é vista como uma evidência da autoridade da Tradição Apostólica. Em 2 Timóteo 2:2, a transmissão do ensinamento apostólico através de sucessores, “O que de mim ouviste em presença de muitas testemunhas, confia-o a homens fieis que, por sua vez, sejam capazes de instruir a outros.”, é interpretada como um sinal da continuidade da autoridade da Igreja.
A primazia de Pedro e a autoridade papal são defendidas com base em Mateus 16:18-19, “E eu te declaro: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus”.”, onde Jesus confere a Pedro as chaves do Reino dos Céus. A missão da Igreja de ensinar e batizar todas as nações, conforme Mateus 28:18-20, “Mas Jesus, aproximando-se, lhes disse: “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo”.”, é vista como um mandado divino que sustenta a autoridade da Igreja em matéria de fé e moral. Por fim, o Concílio de Jerusalém, em Atos 15, é citado como um exemplo bíblico do exercício da autoridade da Igreja na resolução de disputas teológicas, demonstrando que desde os tempos apostólicos a Igreja possuía autoridade para tratar sobre assuntos de fé.
Consequências da Interpretação Bíblica sem o Magistério
A ausência de um magistério centralizado, como o da Igreja Católica, resulta inevitavelmente em uma proliferação de interpretações bíblicas divergentes e frequentemente contraditórias. Essa fragmentação doutrinária não apenas causa confusão e divisão entre os fieis, mas também impede a busca por uma compreensão unificada da Palavra de Deus. A liberdade interpretativa, desprovida da orientação autorizada do Magistério, abre caminho para interpretações subjetivas e propensas a desvios, afastando-se da Tradição Apostólica e da fé transmitida pela Igreja ao longo dos séculos. A história demonstra que essa falta de unidade interpretativa leva ao surgimento de inúmeras seitas e denominações, cada uma com sua própria versão da verdade bíblica, gerando um relativismo doutrinário que prejudica a integridade da fé cristã. Tal realidade é evidenciada pelos dados do Centro para Estudos no Cristianismo Global, que apontam para a existência de 47.300 denominações/práticas cristãs em meados de 2023, com projeções de 49.000 em 2025 e 64.000 em 2050, demonstrando o crescimento exponencial da fragmentação religiosa.
Conclusão
Em síntese, a fé católica, fiel à Tradição Apostólica e ao Magistério, compreende a suficiência da Bíblia de forma integrada: materialmente completa, mas formalmente dependente da interpretação autêntica da Igreja. Essa visão, em contraste com a “Sola Scriptura“, preserva a unidade da fé, evitando a fragmentação doutrinária resultante da interpretação individualizada e garantindo a correta compreensão da Palavra de Deus, conforme transmitida pelos Apóstolos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Artigo apresentado como requisito parcial para a aprovação no Módulo “Introdução às Sagradas Escrituras: Escritura e Dogma”, ministrado pelo Professor Eduardo Faria, no Centro Universitário Católico Ítalo Brasileiro.